31.1.02

Relações relativas

Aconteceu enquanto ela espremia um cravo no nariz. Em todos tipos relacionamentos existem algumas banalidades que tendem promover separação entre as pessoas, outras que tendem a aproximá-las (de si mesmas). Mas tudo é relativo...

" O que aconteceria se ele/ ela morresse? "

Parou imediatamente! Não queria que seu rosto ficasse marcado novamente por mais uma de suas efêmeras unhas. Tinha o costume de passar o tempo remoendo e roendo as unhas das coisas ditas enquanto se espremia. Rosto, sovaco, virilha, tornozelo, barriga, seios - passeio por todos os orifícios. Seus melhores pensamentos vinham enquanto ela apertava sua pele e cautelosamente sentia o ácaro saindo de seus poros. Assim como quando comia chocolate, apertava devagarinho, para não perder nenhuma brecha da prazerosa descarga de endorfina - o hormônio que alivia as dores, naturalmente. Infelizmente, as endorfinas não trabalham por muito tempo. Ela já havia perdido muito tempo e a morte viria - solução?

Livrar-se dos cravos de forma despretensiosa seria a saída mais eficiente encontrada para seu estado de inquietação perante a rotina maldita . Ausência de motivos. O encarar-se com o espelho, em certos casos, é um exercício vicioso de dor e angústia.

Fantasia de morte.

O espelho refletia seus defeitos, detalhadamente. Sua imagem sedentária envelhecia aos poucos. Percebia. O espelho; o olhar para si mesma. O espelho; o cravo. O espelho; a rotina. O espelho; as unhas pretas. Um branco de pensamentos amarrados, amarelo envelhecidos. Na maioria, essas fantasias são compensadas por uma dolorosa trepada com seus devaneios. A questão é que era realmente necessário conhecer algo diferente antes que...

" O que aconteceria se eu a/o matasse?"

Sujas e inúteis amarras. Passaria alguns anos encarcerada - por um momento isso não lhe pareceu tão ruim assim. Como resultado premeditado, pensou no aumento de alguns prováveis cigarros que fumaria na vida. O corpo entre quatro paredes aprisionadas, acompanhada tão somente de pensamentos atolados num mar de poeira cinza; infinita. Obviamente, pensou na sensação de sentir-se só em meio a muita gente que se sente só - a solidão coletiva é das piores. Até aqui valeria a pena matar. Seria diferente e até provável que o fizesse, se não tivesse tanta pena de gente. Tinha pena de tanta coisa (dos bichinhos do zoológico, da fome, da viuvez de sua mãe, da velhice surda de seu avô) menos de si mesma. Nada de piedades. Nunca foi dessas que se queixam às dores das penas vida. Gostava das dores, que além de doerem, lhe traziam deliciosas e inquietantes perguntas sem respostas. Sentia tudo e se sentia mais viva.

É importante que as pessoas estejam dispostas a discutir questões idiotas a tempo, antes que elas se transformem em Gigantes-Monstros-do-Pensamento.

Uma simples sentença pôde mudar a direção do seu pensamento, ou, de sua vida. Quem foi que disse isso? Nunca importa por quem foi dito, mas sim, o que foi absorvido pelos sentidos - sentido. As palavras voavam perdidas em seu pensamento horas e dias depois das conversas que tinha com as mais diferentes espécies de gente parecida. Seguia levando a sério muitas sentenças que ouvia. A palavra sentia dor, se fazendo ferir.

"(...) Nos caminhos, em noites de inverno, sem pouso, sem roupa, sem comida, uma voz me estreitava o coração gelado: 'Fraqueza ou força: aí estás, é força. Não sabes aonde vais nem por que vais, mas entra em toda parte, aberto a tudo. Não te matarão mais do que já fosses cadáver.' Pela manhã meu olhar era tão vago e minha aparência tão morta, que as pessoas que encontrei talvez nem me tenham visto." Arthur Rimbaud - Uma estadia no inferno.

Indiferença e influência. Deu um tiro em sua mão direita. Seria sempre necessário que uma deficiência, indiferença ou influência lhe mostrasse que podes ir além do previsto? Nenhuma dor é insuportável, então, suportou a dor de sobreviver. Sem respostas, duas mãos; duas mãos ela tinha e só usava uma, uma mão agora. E a pergunta? Aos poucos e todo dia, ela percebia que outras questões apareciam em forma de palavras soltas. Fraqueza, força, dores, toda parte, conteúdo, tudo. É inútil usar o pensamento quando aparecem perguntas que transcendem a distinção entre opostos.

A imaginação goza.

Sentia um vazio diferente que devia ser dor ou decepção ou indiferença ou solidão ou cansaço ou mutação ou nada ou palavra ou visão ou pensamento ou tudo ou espelho ou absurdo ou cravo ou morte ou prisão ou crise ou separação ou sonho ou susto ou idiotice ou impossível ou limitação ou hormônio ou unha ou dúvida ou culpa ou frio ou impulso ou verme ou suor ou respiração ou Rimbaud ou silêncio ou furo ou pessimismo ou bizarrice ou cleptomania ou pêlo ou nojo ou percepção ou crença ou velhice ou espaço ou tesão ou felicidade ou drama ou viagem ou confusão ou razão ou outra dimensão ou acaso ou infortúnio ou egoísmo ou remorso ou idiotice ou palavra ou coisa ou acaso ou óbvio ou buraco ou mão...

Tamara Costa


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