21.1.14

Poema em linha reta (Fernando Pessoa)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?



Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



Os versos acima, escritos com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 418. Via Releituras

5.1.14

amarga inveja de whitman

por tamara e costa

o sol esquenta sua cama e você não pode mais dormir
todos estão felizes lá fora
todos tem pra onde ir
com suas famílias e amigos e câmeras

o sol esquenta as testas dos mais vastos assalariados
assim como eu
devia estar alegre
é fim de semana:
você acorda pilhadasso
e sai correndo pra acabar com as banhas
sem pensar
continua quente
ventila & uma rede basta

um dia eu tive um desejo
bem maior que as circunstâncias
hoje tenho que carregá-lo
ingrisia

trabalhar oito horas por dia não foi um sonho
então você acorda
pensamentos esquentam sua caixa craniana e você não pode mais dormir.

1.1.14



˜Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo.˜
Octavio Paz, O arco e a lira


retrospectivas expectativas balanços melhorias 
pior antes ou depois? 
e agora assim junto 
minha boca teu pescoço vacila:
nem tudo deveria ser pensado, calculado, estimado, suposto 
sempre rabiscos na intensidade da nave tura & estilística.

como se não fosse mar e impermanência
em seu próprio ritmo, novo e de novo.

sempre o chamado
as ondas, a espuma
as ondas, a areia
as ondas, o céu
as ondas das nuvens
uma cabeça de gato ou cachorro
solamente um barco que me parece de lá chegado

ser humano todos os dias do ano não estava escrito:
algumas memórias, nem precisa
cantorias do sem tempo
aos amigos, elegias.

como se o chamado 
não fosse o próprio rito
asfixia, voz do povo
e na mais alta afeteção
esquematizar de forma a não criar outro mundo
cópia de uma cópia da ideia.



tamara e costa