Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens

4.5.16

Memórias de um astronauta com Azheimer


*texto escrito em uma oficina de contos. a ideia era que fosse publicado num livro, tava no pacote que ganhei de presente de aniversário no ano do fim do mundo (2012). não me identifiquei com os autores, não me identifiquei com o curso nem com os envolvidos e uma senhora, após a minha leitura de fato "dramática" deste experimento da linguagem, disse que meus escritos tavam muito desconexos, que não tinha entendido nada e ficou claramente irritada. achei curioso, devo escrever sobre isso - ela ficou indignada/puta com a minha não-linearidade. por que, na minha insignificância e clara despretensão (não, não faço a menor questão que me leiam, não todos, de certo uns poucos), e com apenas estas palavras, ela ficou tão chateada? o problema que ela teve comigo é dela, mas também matéria-prima para mim. a ver. bom, acho que essa é parte da ideia: pairar/sobrevoar, desconstruir e tentar atravessar e quando vi pronto! atravessei. pronto, adios. já não mais acá.

 para não perder, tan solo para muertos e para Romano (agente do resgate), aqui está:

memórias de um astronauta com Alzheimer
CMR (Controle da Missão Recuerdo): Dioniso injetado em órbita heliocêntrica. Em deslocamento voluntário, segue em proximidade solar jamais alcançada. Impacto inestimável.

Lá embaixo fui um rato. Desci do módulo e depois fui um águia. Disse: este é um pequeno passo para um rato e um grande salto para uma pássaro. Voo espacial, animal tendencioso, câmbio. Insight confirmado. Estou atravessando o deserto de Marte com todo esse sol fritando as maçãs de meus ocos. Incrível sol de fevereiro cozinhou meu coração com sementes de romã. Eu, imaginem, primeira foto: uma bisonha criança de chifres de uma ilha costeira do Mar Negro. Fenômeno da inversão cronológica, aqui retrocedo Ares. Um dia capturei todas as mensagens e fui capaz de reproduzi-las em ondulações vitoriosas. Por isso fui ordenado ao espaço. No primeiro dia em órbita, foi imensa boca de jacaré, mamita, que me trouxe o café da manhã intergaláctico. Cápsulas leitosas em grânulos redondos com vastos pontilhados, pequenas e saborosas imaginações de minúsculas tetas. Mamá atendeu o chamado e desapareceu, e eu, diante do clarão que explodiu em ecos de «Odin!», eu, que aqui vos digo. Me derreto deslizante rumo ao sol negro. É inacreditável. É fantástico. Minhas células estão doidinhas. Sou um homem corajoso, sou nave persona metástase de elegantes cores. E peço, por favor, me passem a mostarda.

CMR: Dioniso, você DEVE que ir para o outro lado. Vá para o outro lado. VOLTE, este é o comando. Estamos te perdendo.

1,3 segundos ultrapassados no tempo real ou abaixo do tom. Every one is gone to the moon. Mensagem processada. Todos nosotros? Todos. Sim, bebezitos, pequenos pontos de sol que fazem xixi e cocô. No fim de tudo, todos nós devir demência ou retorno ao eixo inicial. Sim, disse também: arrisco-me a perder esta carne de mierda. Mamazita fulminada não me troca mais as fraudas. Atenção, eu vos digo: Comando da Missão Recuerdo, yo estoy todo cagado. Vocês não entendem, mas aqui cheira a merda. Nas alturas de agora é muito mais interessante mostrar minhas incríveis manobras linguísticas. Porque en todo el cosmos no existe a mais nadie a quien pueda yo amar, parabolicamará. Este é o sinal original: siga o sol. Tu não estás solo. Lembra Alfonsina, esquece a confusão mental, as falhas na memória e foca. Foca. Mar negro, quadros de Botero, marias-mole, tudo aquilo que tu tanto gosta. Foca. Missão recuerdo. Foca. Acesso os registros, onde se concentra a memória central. Ok, ao telescópio. Miro o grande ojo que vejo e o signo, o sigo. Olho meu no teu olho tão pierto, que é impossível não seguir fixo pupila redondita. Mas todos têm logo algo perguntar e a minha dúvida: é ou não é um OVNI? Luzita em L, vejo e vos digo que realiza encantadoras elipses, macias manobras que me agarram como se eu fosse eu? um coelhinho me atravessa o ouvido. Tripulação, atenção: redemoinho de astros de auroras soberbas que nada temem. Há vida depois das caravelas. E daí? Há sempre algo por trás disso ou daquilo ali. Informe-se mais sobre a linguagem proibida e preste atenção nas câmeras. Meu nome é Odin, o sol é um pássaro preto e eu nasci em dois ninhos futuros.. Até hoje só não pude compreender porquê me tiraram daquele aninhado bucho e me colocaram no meio de uma coxa. Venado Tuerto, Argentina, 1987. Era eu um astroimpacto. Ou seria 2042? Ei-ei, acabei de sair da casa de Xiita... Subi a montanha do impossível, depois nunca mais voltei de lá. Ai, como é difícil bater palmitas. Ando meio escafandrado. Me ajude, grande ojo, me ajude a tirar essa tralha toda. Mãos, mãe, mamazita... Vou roçar até romper tua peles com cobertura de confetes e velinha nesta data querida. Ei, vocês tem alguma ideia de quantos anos se passaram?

CMR: O sol está a cerca de 6.000 milhas náuticas de você agora. VÁ JÁ para o outro lado. Vá já para o outro lado, câmbio.

Verdade que vi o rosto de Hélios em pulsões de vermelho, amarelo, azul, verde, vermelho e roxos. Senti a cócega do fogo aceso em meio ao círculo que agora sigo ao encontro preciso, grande incêndio que em explosão cósmica faz retornar o filho prometido. Na luanovização estarei de volta. Eu, calor, sonho, poesia. Devo dizer que o impacto expandiu-se. As contrações estão cada vez mais fortes. A pulsão empurrou meu corpo, preciso de umas bolinhas. Meu corpo empurrado contra o dela ela, sim, meu próprio corpo foi impelido até sair pela abertura de uma grande vagina.

CMR: Recomendamos que você abandone o impulso antiterrestre. TANGO-TANGO, estamos perdendo... Bravo-tango, câmbio.

E foi então que nasci pela segunda vez. Digo que quando cheguei do outro lado, senti estupidíssimas dores de cabeça. Era Sol. Era Lua. Era o princípio. Era agora e não mais antes. Me colocaram dentro de uma cápsula redonda deitado como uma galinha choca pronta para ser assada e então eu fui com uma enxaqueca tão insuportável que me retorci no escafandro até cessar o pulso que vinha de meus olhos. Disseram que eu devia escrever tudo, pois as memórias anteriores me seriam sucessivamente deletadas à medida em que eu entrasse em órbita heliocêntrica. Mas então, aquela hora eu já não sabia mais escrever, por isso falo e falo e falo. Está tudo gravado. Coisas incríveis que aconteceram no incrível olho de um sol antes de fevereiro. Desenrolei os emaranhados que me foram propostos, engatado por impulso de mercúrio; de alguns pontos saíram linhas amarelas, de outros, chifre roxos, gugudadá, dont you cry. Meus olhinhos centrados viram o adios de mamá boquita de jacaré me esperando com a cantiga do lado de lá orquestrada por suas corajosas tetas, que sempre vão muito além dessa guerra de representações e pecados. Eu precisava organizar toda essa informação e comunicar aos agentes do comando civilizado antes que fosse tarde demais. Mas percebi que me dava conta de estilísticas mais que aqueles que me ordenavam aflitos deste ou daquele lado das estatísticas. Então disse que corpos são chacras. Me complicam que se ordenam que fale com mais clareza. Uéué. Nasci com a bunda virada pra lua, eu sou a nova, a ida, a vinda, a roda, fio do novelo que continua. Renasço absurdo e sigo entre dois pássaros, um branco un negro. Ondulando fino quase não me contenho, e ultrapasso perspectivas. Nunca me senti tão amável e de textura tão agradável. Meu cérebro, patê de pato. Declínio cognitivo. Qua-qua. O fogo não pode ser devolvido, por isso peço que deixem as lavas queimarem naturalmente meus pezinhos tão bem talhados de carne fofa. Estou cansado dessas pílulas, preciso de comida. Por favor, tomem cuidado com essa merda toda que vocês estão fazendo. Sinto o cheiro. E quando terminarem, por gentileza, me passem a mostarda.



*Tamara e Costa nasceu em 1984, em Planaltina-DF. Prepara e revisa textos, dá cadência a escritos de manga e bolso, e está a serviço do fogo. Mantém o blog laraturamataraturali.

17.10.15

Dez passos de claridade dez passos de escuridão


Vivo sem viver em mim
E tanta vida espero
Que morro porque não morro
[Tereza D'ávila]



Vocês que não sabem o que há depois da morte. Eles disseram que o cara teve uma parada, mas para o Senhor a “A morte é como um sono”, disse. De tal desespero, imaginamos que até evita um estado de horroridão. Pra que temer a morte se Deus está por perto? Por que o medo do que virá? Tenha calma, menina, é sempre pior pra quem fica. A mãe do velho teve 16 filhos, menina. A mãe do velho ficou enquanto se foram três ou quatro meninos. Quando falo velho era o mais velho. A velha dele com 16 filhos, ainda mais velha que ele. Quanta maria do quarto calculemos, talvez 12 homens, entre eles 3 natimortos. Imagina essa pobre chorona velha ninando - crianças. Nós choramos muito. Nós choramos e vem de dentro e as vezes choro é tal desespero que se faz grito. Procurávamos sua carteira, as senhas do cartão que você não deixou. A velha abre o criado ao lado da cama um relógio de ouro sem bateria: 11:11. Seu avô tá melhor? Ele ajuda, segura antigas mãos com maestria, segura a corda acima da cama, segura até que ele chame. Ele quem? O Senhor. Ele também nos concedeu o esquecimento e a graça de nunca calar-nos, amém. Ou calarmo-nos, amém. Nessas horas você não tem mais nada pra dizer, só calar os olhos e fechar duma vez os dentes. Será que ele terá salvação? Os dentes estão quebrados. Parece que eu tô sonhando. Errr, demora um pouco pra cair a ficha. Colocaram a sonda – tipo começando a entubar. Se for pra UTI já era. Acorda, vô. Come mais, senão cê num vai embora. Se morre, morre oras, entubação final no caixão rodeado de crisântemos. Eles preparam o seu sorriso e os dentes quebrados ninguém verá. Às vezes você consegue não chorar. Parece um sonho. Você está com um semblante mais calmo. Três ou quatro comprimidos depois você acorda rodeado de gentes como um boi de alimentar piranha. Defuntos, peixes adoram. Imagina morrer boi de piranha, grotesco. Cadáveres são grotescos.  Contemplar a morte é grotesco. Mas é isso que fazem. Contemplam o morto e rezam envolto de crisântemos. Mas na vida nem aparecia, nem rezava, nem chorava. Incoerências. Olha aquela lá. Namorar um homem casado? Piranha. Mas ele quem procurou. Safado ele, ela, piranha mesmo, puta. Mulher que namora homem casado é puta. Eles tiveram que reunir 300 pilas para coroa de crisântemos e a burocracia. Uma linda coroa. Eu estava gostando muito de ter uma ideia e escrever. Também fiquei olhando pra puta fictícia - num era ela, confundiram. Atiraram pra cima. As piranhas sairam voando. O cara que morreu ao lado era trafica. Sinais de chumbo e sangue não devem se apagar nunquinha - um grito baleado de horror imortal. Ele longe disse, vai, escreve, sobre a estância holandesa, sobre o amor livre, sobre ela, escreve sobre nós. Falou também sobre as praias da Tailândia com desalmado entusiasmo, sem unidade de significação. Escreve que você encontra motivos. É complicado nesses dias de tanto sol e superbactérias a espreita dessa vida que não se demora. Há, felizmente, as drogas, jovens e velhos, novas drogas e a possibilidade de ficar mais um pouquinho. Remedinho, toma aí. Remediado está. Os doze irmãos virão? Os médicos chegaram e disseram tome mais água que o xixi tá muito escuro, você bebendo pouca água, desse jeito vai morrer. Quem é você, Senhor? Eu morri mesmo, algumas vezes. Se a morte é como um sono e eu que durmo tanto? Cadeira de hospital, durmo. Sofá, encosto e durmo. Cama, durmo três dias seguidos sem beber água - só fumando. Comecei a existir em apenas alguns minutos após três dias na extensão dos sonhos. A realidade, um estado de depressão. A pele entristecida do velho ao sol preparando o chão missão de Urano. Deve ser mais confortável ter passado ao sol plantando sem impactos as sementes, estes filhos que agora somos. Por parte de pai eram imigrantes ou imigrados, Portugal com África. Por parte de mãe, agricultores e coletores. Sabem sobre temporais e deslizamentos. Vocês que nos julgam culpados pelos ritos, com que mãos lotadas de balanças erguerão um abraço ao filho deixado; e no lugar do abandono uma neurose impressa no pulmão. DNA, you never knows. Você é do tipo café ou cenoura? Presta atenção, quando a chapa esquenta cê amolece ou transmuta? Que poderia eu fazer com vocês e suas mil e duas analogias interessantíssimas? Como alma desperta, deveria não continuar fazendo as mesmas merdas. Você pode fazer um bebê, sabe, ter uma família. Ele deve reencarnar logo. Deixou muitos nós. Doze filhos? Todos desconectados. Os humanos e suas mentiras. Raro vejo um que não é covarde. Convenhamos, esse mundo não está ficando melhor, nunca saímos da barbárie. O Senhor distante está ficando cada vez mais complicado mas todos estão conectados - degradados filhos. Saber como você está por dentro é melhor não falar. Ou então você ali de final na UTI devorando e sendo devorado pelas paixões segundo as superbactérias. “Que nosso fogo interno esteja ao máximo, para esquentar a regra ao rubro e modifica-la! Que nossa realidade interior seja tão forte que corrija a realidade exterior!", disse Braque. Sempre presente morte, musa da filosofia.  Senhor, tomara que esteja alinhado também nessa hora e não me esqueçam meu chapéu de peão e minha blusa quadriculada. Alinhar os de cima e os de baixo que é meio complicado. Assim que tu, orvalho de luz, minha neta, não vá repetir a merda e daqui há mil anos ter a pele devorada no ar de nuvens tóxicas acima do lago de fogo e enxofre. As vezes a morte é como um susto, te faz acordar pra realidade, lembrar de tudo. Sem que ninguém o conduza, já nos faz lembrar que eles não te conhecem nunca de maneira absoluta - e você segue mentindo para poder continuar.  Até que ponto famílias têm intimidade para revelarem entre si os segredos? Até que ponto querem saber? É melhor que desconheçam. Atrás de qual árvore está o buraco do coelhinho. Vamos! Podemos considerar que tudo é real e certo ou que o buraco é mais embaixo – ou ao lado da cova da última filha - ou abaixo. Então ele se faz existir apenas no momento que está conectado. Nós nos conectamos em oração de silêncio. Abro um parênteses, algo em seus olhos desde a primeira vez me fez ver como estou agora olhando você me ver. Algo em seus olhos era blue. Hilda a gata atravessou o carro do outro lado da rua estava. Tratamos também de abrir–lhe um buraco na sombra abaixo do algodoeiro.

tamara e.

3.7.15

[morrendo assim no cerne do silêncio] com Maurice Blanchot

Quando morre um escritor "o que se abre não é exatamente o silêncio, mas o 'recuo' do silêncio, por um rasgão na espessura silenciosa e, através desse rasgão, pela aproximação de um novo ruído que anunciará a era sem palavra. Nada de grave, nada de ruidoso; apenas um murmúrio, que nada acrescentará ao grande tumulto das cidades de que julgamos sofrer. A sua única característica: é incessante. Uma vez ouvido, não pode deixar de o ser, e como nunca o ouvimos verdadeiramente, como escapa à escuta, escapa também à toda distração, tanto mais presente quanto mais nos desviamos: ressoar antecipado do que foi dito e do que nunca será". Maurice Blanchot (1984), citado no artigo "A morte do último escritor"


Falar já não é dizer nem denominar. Falar é celebrar, e celebrar é glorificar, fazer da fala uma pura consumação irradiante que ainda diz quando nada mais há a dizer, que não dá nome ao que é sem nome, mas o acolhe, o invoca e o celebra, única linguagem em que a noite e o silêncio se manifestam sem que se quebrem nem se revelem:
Oh, diz-me, poeta, o que tu fazes.  – Eu celebro.
Mas o mortal e o monstruoso,
Como o suportas e o acolhes? – Eu celebro.
Mas o sem nome, o anônimo,
Como, poeta, o invocas, porém? – Eu celebro.
Onde adquires o direito de ser verdadeiro
Em todas as roupagens, sob todas as máscaras? – Eu celebro.
E como o silêncio te conhece, e o furor,
Assim como a estrela e a tempestade? – Porque celebro.

(também Blanchot, 1987, citado no artigo "A curvatura da escrita")