23.1.02

Águas azuis

Declaro agora todo meu choro contido. Lágrimas azuis de blues. Gritos e súplicas roucas - amo e isso é bom e ruim e começa e acaba e vive e morre e tudo é blues sem hora marcada, sem dia previsto. Doendo, sonhando, rindo. Encontro com o café marcado. Minhas palavras escorrem pelo teclado como descobertas infantis - eu chorei quando li. É tudo, é o mundo explodindo, as cartas indo, o telefone tocando, eu gritando, imaginando, você chegando, eu ouvindo somente e só um pequeno blues da manhã, à noite. Ouço vozes negras. Efeito de alguma embriaguez tão sóbria quanto minha mão trêmula, não bebi agora. Não sei cantar isso que eu chamo "or, oh" e estou aprendendo, ouvindo, sentindo, a música saindo lentamente dos meus lábios azuis. Estou aprendendo a dizer que amo - eu tinha defesas contra isso de dizer premeditando alguma resposta recíproca.

As águas inertes sem rumo, mas indo, como ondas em perfeita harmonia; disritmicamente ritmadas - blues. Inesperado como o mar eu sinto uma onda vindo, a água azul salgada escorrendo pela gola da minha camisola amarela - cor de foto antiga, cor de palavra não dita. Estava num recital de poesia com hora marcada, minha cabeça pesada, pensando em onde estaria tua palavra. O teatro sendo demolido, os protestos, eu no meio sem saber por que eu gritava, mas ainda com forças eu gritava por algum motivo - não queria que alguma coisa idiota acabasse impedindo o espetáculo da poesia rouca.

O que a vida nos aprontava? O que o teatro significava? Máscaras , eu sei que preciso de alguma que disfarce o que sinto, porque não quero explicar nem dizer a ninguém o que estou...

Decidi enfrentar minha cara no espelho. Atendi o telefone olhando pro espelho. Vi meu rosto decomposto, criando uma imagem azul, cheirando a blues velho - amarelo. Desligou, as luzes se apagaram. Ouvimos o silêncio:

" A fúria da força no chão oco, silêncio..." silêncio - poesia.

O ator se manifestando contra o manifesto por pressão. Aquilo era simplesmente pela simbólica demolição da história de uma vida que ali havia acontecido? Devemos estar sempre atentos, alertas, antes que sejamos sucumbidos por uma imagem otária de poesia barata, vendida. O palco estava arruinado, o ator cansado, as pessoas pisando nos cacos de parede; pisando com vontade na velha história mentirosa e construindo uma nova - sem fashes fotografando, pisavam no esquecido passado maldito. Quero foder com a história de verdades vagas e vazias! Quero trepar com a poesia esquecida...

Enquanto isso a vida tratava de marcar nossos desencontros, e isso bastava para que eu não conseguisse mais escrever na terceira pessoa do singular. Nós estou sozinha com tua palavra na sala de estar - sozinha ouvindo blues. Na ponta da língua o gosto de cigarro. As papilas contraídas, as pupilas dilatadas, a televisão desligada, a imagem desgastada, o espelho da mesmice, a sala cretina e a voz que não falava - ouvia.

Diga que tudo está bem e vou chorar durante dois dias. Vou doer enquanto você vem chegando aos poucos.
Cada parte vindo inteira, com tudo em cada detalhe.
O mundo se matando com competições violentas.
Tudo espelho, tudo se refletindo.
Nada mais me preocupava, minha imagem se desmaterializada no espelho côncavo.
A madrugada adentrando nosso mundo de feridas sem motivos conexos.
Dor de alívio.

Antes que eu insista em dizer mais uma palavra tola, coloque teu dedo indicador dentro da minha boca e retire isso que eu nem queria dizer. Quero esquecer o ponto, perder a hora, ir embora e continuar coincidindo em cada estrofe o que sinto. O telefone não toca mais. Tudo está tão calmo agora. O blues está ficando baixinho, e está dando pra ouvir a última súplica se esvaindo.

Tamara Costa


:::posted by Tamara Costa

Nenhum comentário: