Ária amaríssima de um instante
(Hilda Hilst)
Ária Amaríssima de um instante
SOBRE mim o sudário das coisas. Brandura extensa
Camada-transparência sobre as gentes. Vê só:
Eu não te olho com o teu olho que sabe
Que quase tudo em ti é transitório. Meu olho-liquidez
Descobre uma tarde esvaída, tarde-madrugada
Tempo alongado onde te fizeste em viuvez.
Não perdeste a mulher ou o homem que amavas. Amamos tanto
E a perda é cotidiana e infinita. Não é isso
AGORA
Quando te olho e sei de um Tempo-Tarde-Madrugada alongada.
Olhaste à tua frente, ou do lado ou acima de ti
Ou não olhaste, ou de repente alguém entrou na tua sala
E disse claramente: devo dizer que sim àqueles da Extens Union?
Que sim? A quem? E sou eu mesmo, este que está aqui?
Distância, sigilosa incongruência, eu mesmo?
A boca do outro continua: prazo perda dez por cento solução final...
Solução final final... Te dobras inteiro com muita sobriedade
O documento na última gaveta, bem à esquerda... Meu Pai,
Entre o papel e eu, entre esta mesa e eu
E essa boca inteira debulhada, entre eu mesmo e aquele
Que repete Union Union, que filamento? Âncora,
Tempo coagulado, um dia fui descanso e pastoreio. Um dia
Tudo era eu, bulbo que seduzia, goela clarividente
Uivo gordo viscoso, uivei entre as parreiras, uivei
Porque sabia deste AGORA,
Que a cadela do Tempo me roia, ia roer, rosnava me roendo
Cadela-tempo, tu e eu... que contorno de nada, que coisa ida
Nossa dúplice aventura, que... que sim, que sim... Olha:
Diga que sim a esses da Extens Union.
Texto extraído do releituras que extraiu do "Cadernos da literatura brasileira", editado em outubro de 1999.
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