17.10.15

Dez passos de claridade dez passos de escuridão


Vivo sem viver em mim
E tanta vida espero
Que morro porque não morro
[Tereza D'ávila]



Vocês que não sabem o que há depois da morte. Eles disseram que o cara teve uma parada, mas para o Senhor a “A morte é como um sono”, disse. De tal desespero, imaginamos que até evita um estado de horroridão. Pra que temer a morte se Deus está por perto? Por que o medo do que virá? Tenha calma, menina, é sempre pior pra quem fica. A mãe do velho teve 16 filhos, menina. A mãe do velho ficou enquanto se foram três ou quatro meninos. Quando falo velho era o mais velho. A velha dele com 16 filhos, ainda mais velha que ele. Quanta maria do quarto calculemos, talvez 12 homens, entre eles 3 natimortos. Imagina essa pobre chorona velha ninando - crianças. Nós choramos muito. Nós choramos e vem de dentro e as vezes choro é tal desespero que se faz grito. Procurávamos sua carteira, as senhas do cartão que você não deixou. A velha abre o criado ao lado da cama um relógio de ouro sem bateria: 11:11. Seu avô tá melhor? Ele ajuda, segura antigas mãos com maestria, segura a corda acima da cama, segura até que ele chame. Ele quem? O Senhor. Ele também nos concedeu o esquecimento e a graça de nunca calar-nos, amém. Ou calarmo-nos, amém. Nessas horas você não tem mais nada pra dizer, só calar os olhos e fechar duma vez os dentes. Será que ele terá salvação? Os dentes estão quebrados. Parece que eu tô sonhando. Errr, demora um pouco pra cair a ficha. Colocaram a sonda – tipo começando a entubar. Se for pra UTI já era. Acorda, vô. Come mais, senão cê num vai embora. Se morre, morre oras, entubação final no caixão rodeado de crisântemos. Eles preparam o seu sorriso e os dentes quebrados ninguém verá. Às vezes você consegue não chorar. Parece um sonho. Você está com um semblante mais calmo. Três ou quatro comprimidos depois você acorda rodeado de gentes como um boi de alimentar piranha. Defuntos, peixes adoram. Imagina morrer boi de piranha, grotesco. Cadáveres são grotescos.  Contemplar a morte é grotesco. Mas é isso que fazem. Contemplam o morto e rezam envolto de crisântemos. Mas na vida nem aparecia, nem rezava, nem chorava. Incoerências. Olha aquela lá. Namorar um homem casado? Piranha. Mas ele quem procurou. Safado ele, ela, piranha mesmo, puta. Mulher que namora homem casado é puta. Eles tiveram que reunir 300 pilas para coroa de crisântemos e a burocracia. Uma linda coroa. Eu estava gostando muito de ter uma ideia e escrever. Também fiquei olhando pra puta fictícia - num era ela, confundiram. Atiraram pra cima. As piranhas sairam voando. O cara que morreu ao lado era trafica. Sinais de chumbo e sangue não devem se apagar nunquinha - um grito baleado de horror imortal. Ele longe disse, vai, escreve, sobre a estância holandesa, sobre o amor livre, sobre ela, escreve sobre nós. Falou também sobre as praias da Tailândia com desalmado entusiasmo, sem unidade de significação. Escreve que você encontra motivos. É complicado nesses dias de tanto sol e superbactérias a espreita dessa vida que não se demora. Há, felizmente, as drogas, jovens e velhos, novas drogas e a possibilidade de ficar mais um pouquinho. Remedinho, toma aí. Remediado está. Os doze irmãos virão? Os médicos chegaram e disseram tome mais água que o xixi tá muito escuro, você bebendo pouca água, desse jeito vai morrer. Quem é você, Senhor? Eu morri mesmo, algumas vezes. Se a morte é como um sono e eu que durmo tanto? Cadeira de hospital, durmo. Sofá, encosto e durmo. Cama, durmo três dias seguidos sem beber água - só fumando. Comecei a existir em apenas alguns minutos após três dias na extensão dos sonhos. A realidade, um estado de depressão. A pele entristecida do velho ao sol preparando o chão missão de Urano. Deve ser mais confortável ter passado ao sol plantando sem impactos as sementes, estes filhos que agora somos. Por parte de pai eram imigrantes ou imigrados, Portugal com África. Por parte de mãe, agricultores e coletores. Sabem sobre temporais e deslizamentos. Vocês que nos julgam culpados pelos ritos, com que mãos lotadas de balanças erguerão um abraço ao filho deixado; e no lugar do abandono uma neurose impressa no pulmão. DNA, you never knows. Você é do tipo café ou cenoura? Presta atenção, quando a chapa esquenta cê amolece ou transmuta? Que poderia eu fazer com vocês e suas mil e duas analogias interessantíssimas? Como alma desperta, deveria não continuar fazendo as mesmas merdas. Você pode fazer um bebê, sabe, ter uma família. Ele deve reencarnar logo. Deixou muitos nós. Doze filhos? Todos desconectados. Os humanos e suas mentiras. Raro vejo um que não é covarde. Convenhamos, esse mundo não está ficando melhor, nunca saímos da barbárie. O Senhor distante está ficando cada vez mais complicado mas todos estão conectados - degradados filhos. Saber como você está por dentro é melhor não falar. Ou então você ali de final na UTI devorando e sendo devorado pelas paixões segundo as superbactérias. “Que nosso fogo interno esteja ao máximo, para esquentar a regra ao rubro e modifica-la! Que nossa realidade interior seja tão forte que corrija a realidade exterior!", disse Braque. Sempre presente morte, musa da filosofia.  Senhor, tomara que esteja alinhado também nessa hora e não me esqueçam meu chapéu de peão e minha blusa quadriculada. Alinhar os de cima e os de baixo que é meio complicado. Assim que tu, orvalho de luz, minha neta, não vá repetir a merda e daqui há mil anos ter a pele devorada no ar de nuvens tóxicas acima do lago de fogo e enxofre. As vezes a morte é como um susto, te faz acordar pra realidade, lembrar de tudo. Sem que ninguém o conduza, já nos faz lembrar que eles não te conhecem nunca de maneira absoluta - e você segue mentindo para poder continuar.  Até que ponto famílias têm intimidade para revelarem entre si os segredos? Até que ponto querem saber? É melhor que desconheçam. Atrás de qual árvore está o buraco do coelhinho. Vamos! Podemos considerar que tudo é real e certo ou que o buraco é mais embaixo – ou ao lado da cova da última filha - ou abaixo. Então ele se faz existir apenas no momento que está conectado. Nós nos conectamos em oração de silêncio. Abro um parênteses, algo em seus olhos desde a primeira vez me fez ver como estou agora olhando você me ver. Algo em seus olhos era blue. Hilda a gata atravessou o carro do outro lado da rua estava. Tratamos também de abrir–lhe um buraco na sombra abaixo do algodoeiro.

tamara e.

24.7.15

a crítica surrealista de Willer

"Como já observei em outras ocasiões, indagando sobre a possibilidade de uma crítica surrealista (Willer 2008-a, p. 318; Willer 2006), o surrealismo é um instrumento de leitura; um meio para enxergar mais em outros autores, independentemente desses serem expressamente vinculados ou não àquele movimento. Inclusive para enxergar mais em Dante, como já o sugerira Breton no Manifesto do Surrealismo, ao abrir a série de atributos surrealistas em predecessores: (“Mallarmé é surrealista na confidêmcia. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo.” etc): “Numerosos poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante e, em seus melhores momentos, Shakespeare” (Breton 2001, p. 41) É o procedimento de Piva com relação a Dante, invertendo-o, transformando o Inferno em Paraíso."

22.7.15

morrendo infinito com Blanchot

"… Pode ser que Nathalie, falando-me desse projeto
só tenha querido destruir, com seu ciúme, 
as aparências que vivíamos.
Pode ser que, cansada de me ver assumir com aparente fé,
meu papel no grand monde, ela tenha com essa história
lembrando a verdade de minha condição e apontado meu lugar.
Ela ainda pode ter obedecido a uma ordem misteriosa
que era minha e que soa em mim como voz reconhecida,
voz ciumenta também de um sentimento incapaz de se apagar.
Quem pode dizer: isso aconteceu porque os incidentes permitiram?
Isso aconteceu porque, certo dia, os fatos se tornaram enganosos
e num arranjo estranho autorizaram a verdade a se apropriar deles.
Eu não fui o mensageiro infeliz de uma ideia mais forte que eu,
nem seu brinquedo, nem sua vitima, pois esta ideia,
se me venceu, só venceu por mim;
e finalmente ela sempre esteve eu a minha altura.
Eu a amei e só amei a ela e tudo que aconteceu
eu o quis.
E só tendo olhos para ela, onde estivesse e onde eu pudesse estar,
na ausência, na tristeza,
na fatalidade das coisas mortas,
na necessidade das coisas vivas,
na fadiga do trabalho,
nos rostos nascidos da minha curiosidade,
nas minhas falsas palavras,
juramentos misteriosos,
no silencio e à noite,
 eu lhe dei toda a força
e ela me deu a sua toda,
de modo que esta força tão grande,
incapaz de ser desfeita, nos conduz, talvez,
a sofrer sem medida.
Mas se é assim, este sofrer,
eu o suporto e me regozijo muito.
E a ela, eu digo eternamente
"Vem", e ela eternamente está lá."


Maurice Blanchot, in L'arrêt de mort

3.7.15

[morrendo assim no cerne do silêncio] com Maurice Blanchot

Quando morre um escritor "o que se abre não é exatamente o silêncio, mas o 'recuo' do silêncio, por um rasgão na espessura silenciosa e, através desse rasgão, pela aproximação de um novo ruído que anunciará a era sem palavra. Nada de grave, nada de ruidoso; apenas um murmúrio, que nada acrescentará ao grande tumulto das cidades de que julgamos sofrer. A sua única característica: é incessante. Uma vez ouvido, não pode deixar de o ser, e como nunca o ouvimos verdadeiramente, como escapa à escuta, escapa também à toda distração, tanto mais presente quanto mais nos desviamos: ressoar antecipado do que foi dito e do que nunca será". Maurice Blanchot (1984), citado no artigo "A morte do último escritor"


Falar já não é dizer nem denominar. Falar é celebrar, e celebrar é glorificar, fazer da fala uma pura consumação irradiante que ainda diz quando nada mais há a dizer, que não dá nome ao que é sem nome, mas o acolhe, o invoca e o celebra, única linguagem em que a noite e o silêncio se manifestam sem que se quebrem nem se revelem:
Oh, diz-me, poeta, o que tu fazes.  – Eu celebro.
Mas o mortal e o monstruoso,
Como o suportas e o acolhes? – Eu celebro.
Mas o sem nome, o anônimo,
Como, poeta, o invocas, porém? – Eu celebro.
Onde adquires o direito de ser verdadeiro
Em todas as roupagens, sob todas as máscaras? – Eu celebro.
E como o silêncio te conhece, e o furor,
Assim como a estrela e a tempestade? – Porque celebro.

(também Blanchot, 1987, citado no artigo "A curvatura da escrita")

26.6.15

lá em Portugal aqui

Seleção de poemas e desenhos [Pontos de partida] para Floriano Martins, publicada neste mês na Revista InComunidade.

www.incomunidade.com

18.6.15

MARIA SABINA




[...] eu sou a mulher das letras, diz
eu sou um livro mulher, diz
ninguém consegue fechar meu livro, diz
ninguém pode tirar de mim meu livro, diz
meu livro encontrado debaixo d’água, diz

meu livro de orações


Velada da madrugada - fragmentos - tradução de Reuben da Rocha. Via Gratuita Vol 2 - Atlas.

4.4.15

dentro da manga

Julio Cortázar
(1914-1984)


No se culpe a nadie
(Final del juego, 1956)

         El frío complica siempre las cosas, en verano se está tan cerca del mundo, tan piel contra piel, pero ahora a las seis y media su mujer lo espera en una tienda para elegir un regalo de casamiento, ya es tarde y se da cuenta de que hace fresco, hay que ponerse el pulóver azul, cualquier cosa que vaya bien con el traje gris, el otoño es un ponerse y sacarse pulóveres, irse encerrando, alejando. Sin ganas silba un tango mientras se aparta de la ventana abierta, busca el pulóver en el armario y empieza a ponérselo delante del espejo. No es fácil, a lo mejor por culpa de la camisa que se adhiere a la lana del pulóver, pero le cuesta hacer pasar el brazo, poco a poco va avanzando la mano hasta que al fin asoma un dedo fuera del puño de lana azul, pero a la luz del atardecer el dedo tiene un aire como de arrugado y metido para adentro, con una uña negra terminada en punta. De un tirón se arranca la manga del pulóver y se mira la mano como si no fuese suya, pero ahora que está fuera del pulóver se ve que es su mano de siempre y él la deja caer al extremo del brazo flojo y se le ocurre que lo mejor será meter el otro brazo en la otra manga a ver si así resulta más sencillo. Parecería que no lo es porque apenas la lana del pulóver se ha pegado otra vez a la tela de la camisa, la falta de costumbre de empezar por la otra manga dificulta todavía más la operación, y aunque se ha puesto a silbar de nuevo para distraerse siente que la mano avanza apenas y que sin alguna maniobra complementaria no conseguirá hacerla llegar nunca a la salida. Mejor todo al mismo tiempo, agachar la cabeza para calzarla a la altura del cuello del pulóver a la vez que mete el brazo libre en la otra manga enderezándola y tirando simultáneamente con los dos brazos y el cuello. En la repentina penumbra azul que lo envuelve parece absurdo seguir silbando, empieza a sentir como un calor en la cara aunque parte de la cabeza ya debería estar afuera, pero la frente y toda la cara siguen cubiertas y las manos andan apenas por la mitad de las mangas, por más que tira nada sale afuera y ahora se le ocurre pensar que a lo mejor se ha equivocado en esa especie de cólera irónica con que reanudó la tarea, y que ha hecho la tontería de meter la cabeza en una de las mangas y una mano en el cuello del pulóver. Si fuese así su mano tendría que salir fácilmente, pero aunque tira con todas sus fuerzas no logra hacer avanzar ninguna de las dos manos aunque en cambio parecería que la cabeza está a punto de abrirse paso porque la lana azul le aprieta ahora con una fuerza casi irritante la nariz y la boca, lo sofoca más de lo que hubiera podido imaginarse, obligándolo a respirar profundamente mientras la lana se va humedeciendo contra la boca, probablemente desteñirá y le manchará la cara de azul. Por suerte en ese mismo momento su mano derecha asoma al aire, al frío de afuera, por lo menos ya hay una afuera aunque la otra siga apresada en la manga, quizá era cierto que su mano derecha estaba metida en el cuello del pulóver, por eso lo que él creía el cuello le está apretando de esa manera la cara, sofocándolo cada vez más, y en cambio la mano ha podido salir fácilmente. De todos modos y para estar seguro lo único que puede hacer es seguir abriéndose paso, respirando a fondo y dejando escapar el aire poco a poco, aunque sea absurdo porque nada le impide respirar perfectamente salvo que el aire que traga está mezclado con pelusas de lana del cuello o de la manga del pulóver, y además hay el gusto del pulóver, ese gusto azul de la lana que le debe estar manchando la cara ahora que la humedad del aliento se mezcla cada vez más con la lana, y aunque no puede verlo porque si abre los ojos las pestañas tropiezan dolorosamente con la lana, está seguro de que el azul le va envolviendo la boca mojada, los agujeros de la nariz, le gana las mejillas, y todo eso lo va llenando de ansiedad y quisiera terminar de ponerse de una vez el pulóver sin contar que debe ser tarde y su mujer estará impacientándose en la puerta de la tienda. Se dice que lo más sensato es concentrar la atención en su mano derecha, porque esa mano por fuera del pulóver está en contacto con el aire frío de la habitación, es como un anuncio de que ya falta poco y además puede ayudarlo, ir subiendo por la espalda hasta aferrar el borde inferior del pulóver con ese movimiento clásico que ayuda a ponerse cualquier pulóver tirando enérgicamente hacia abajo. Lo malo es que aunque la mano palpa la espalda buscando el borde de lana, parecería que el pulóver ha quedado completamente arrollado cerca del cuello y lo único que encuentra la mano es la camisa cada vez más arrugada y hasta salida en parte del pantalón, y de poco sirve traer la mano y querer tirar de la delantera del pulóver porque sobre el pecho no se siente más que la camisa, el pulóver debe haber pasado apenas por los hombros y estará ahí arrollado y tenso como si él tuviera los hombros demasiado anchos para ese pulóver, lo que en definitiva prueba que realmente se ha equivocado y ha metido una mano en el cuello y la otra en una manga, con lo cual la distancia que va del cuello a una de las mangas es exactamente la mitad de la que va de una manga a otra, y eso explica que él tenga la cabeza un poco ladeada a la izquierda, del lado donde la mano sigue prisionera en la manga, si es la manga, y que en cambio su mano derecha que ya está afuera se mueva con toda libertad en el aire aunque no consiga hacer bajar el pulóver que sigue como arrollado en lo alto de su cuerpo. Irónicamente se le ocurre que si hubiera una silla cerca podría descansar y respirar mejor hasta ponerse del todo el pulóver, pero ha perdido la orientación después de haber girado tantas veces con esa especie de gimnasia eufórica que inicia siempre la colocación de una prenda de ropa y que tiene algo de paso de baile disimulado, que nadie puede reprochar porque responde a una finalidad utilitaria y no a culpables tendencias coreográficas. En el fondo la verdadera solución sería sacarse el pulóver puesto que no ha podido ponérselo, y comprobar la entrada correcta de cada mano en las mangas y de la cabeza en el cuello, pero la mano derecha desordenadamente sigue yendo y viniendo como si ya fuera ridículo renunciar a esa altura de las cosas, y en algún momento hasta obedece y sube a la altura de la cabeza y tira hacia arriba sin que él comprenda a tiempo que el pulóver se le ha pegado en la cara con esa gomosidad húmeda del aliento mezclado con el azul de la lana, y cuando la mano tira hacia arriba es un dolor como si le desgarraran las orejas y quisieran arrancarle las pestañas. Entonces más despacio, entonces hay que utilizar la mano metida en la manga izquierda, si es la manga y no el cuello, y para eso con la mano derecha ayudar a la mano izquierda para que pueda avanzar por la manga o retroceder y zafarse, aunque es casi imposible coordinar los movimientos de las dos manos, como si la mano izquierda fuese una rata metida en una jaula y desde afuera otra rata quisiera ayudarla a escaparse, a menos que en vez de ayudarla la esté mordiendo porque de golpe le duele la mano prisionera y a la vez la otra mano se hinca con todas sus fuerzas en eso que debe ser su mano y que le duele, le duele a tal punto que renuncia a quitarse el pulóver, prefiere intentar un último esfuerzo para sacar la cabeza fuera del cuello y la rata izquierda fuera de la jaula y lo intenta luchando con todo el cuerpo, echándose hacia adelante y hacia atrás, girando en medio de la habitación, si es que está en el medio porque ahora alcanza a pensar que la ventana ha quedado abierta y que es peligroso seguir girando a ciegas, prefiere detenerse aunque su mano derecha siga yendo y viniendo sin ocuparse del pulóver, aunque su mano izquierda le duela cada vez más como si tuviera los dedos mordidos o quemados, y sin embargo esa mano le obedece, contrayendo poco a poco los dedos lacerados alcanza a aferrar a través de la manga el borde del pulóver arrollado en el hombro, tira hacia abajo casi sin fuerza, le duele demasiado y haría falta que la mano derecha ayudara en vez de trepar o bajar inútilmente por las piernas, en vez de pellizcarle el muslo como lo está haciendo, arañándolo y pellizcándolo a través de la ropa sin que pueda impedírselo porque toda su voluntad acaba en la mano izquierda, quizá ha caído de rodillas y se siente como colgado de la mano izquierda que tira una vez más del pulóver y de golpe es el frío en las cejas y en la frente, en los ojos, absurdamente no quiere abrir los ojos pero sabe que ha salido fuera, esa materia fría, esa delicia es el aire libre, y no quiere abrir los ojos y espera un segundo, dos segundos, se deja vivir en un tiempo frío y diferente, el tiempo de fuera del pulóver, está de rodillas y es hermoso estar así hasta que poco a poco agradecidamente entreabre los ojos libres de la baba azul de la lana de adentro, entreabre los ojos y ve las cinco uñas negras suspendidas apuntando a sus ojos, vibrando en el aire antes de saltar contra sus ojos, y tiene el tiempo de bajar los párpados y echarse atrás cubriéndose con la mano izquierda que es su mano, que es todo lo que le queda para que lo defienda desde dentro de la manga, para que tire hacia arriba el cuello del pulóver y la baba azul le envuelva otra vez la cara mientras se endereza para huir a otra parte, para llegar por fin a alguna parte sin mano y sin pulóver, donde solamente haya un aire fragoroso que lo envuelva y lo acompañe y lo acaricie y doce pisos.


2.3.15

saída à lucidez e equilíbrio

Teoria das cores
Herberto Helder

"Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrado e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos fatos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo."

*Texto extraído de Os passos em volta (Herberto Helder; azougue editorial, 2005).

9.1.15

A estética do oprimido - Augusto Boal (2009) - trechos

Como é possível defender a multiplicidade cultural e, ao mesmo tempo, a ideia de que existe apenas uma estética, válida para todos? Seria o mesmo que defender a democracia e, ao mesmo tempo, a ditadura

A castração estética vulnerabiliza a cidadania obrigando-a a obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos, sem pensá-las, refutá-las, sequer entendê-las!

O analfabetismo estético, que assola até alfabetizados em leitura e escritura, é perigoso instrumento de dominação que permite aos opressores a subliminal Invasão dos Cérebros! As ideias dominantes em uma sociedade são as ideias das classes dominantes, certo, mas, por onde penetram essas ideias?

Pelos soberanos canais estéticos da Palavra, da Imagem e do Som, latifúndios dos opressores! É também nestes domínios que devemos travar as lutas sociais e políticas em busca de sociedades sem opressores e sem oprimidos. Um novo mundo é possível: há que inventá-lo!

***
 ... avanço duas teses principais: 1 — existem duas formas humanas de pensamento – Sensível e Simbólico –, e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas complementares, poderosas, e são, ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles que impõem suas ideologias às sociedades que dominam; 2 — como todas as sociedades estão divididas em classes, castas, etnias, nações, religiões e outras confrontações, é absurdo afirmar a existência de uma só estética que a todos contemple com suas regras, leis e paradigmas: existem muitas estéticas, todas de igual valor, quando têm valor.

***

Quando exercido pelos oprimidos, o Pensamento Sensível é censurado e proibido – eles não têm direito à sua própria criatividade: máquina não cria. Aperta-se um botão... e produz. Podem também ser usados como macaquinhos de realejo em programas de auditório...

***

Rosa Luxemburgo escreveu que o primeiro ato revolucionário é chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. É verdade! Por que não se quer ouvir a verdade?

***

O Conhecimento acumula; Pensamento é aventura. O Conhecimento traz o passado até o instante presente; o Pensamento, do instante, permite avançar para o futuro ou revisitar o passado.

Conhecer, Conhecimento e Pensamentos são níveis e modos de um mesmo processo psíquico. O Conhecimento não é uma estática estante de livros, depósito: é vivo e pulsativo, memória e esquecimento, acendeapaga. Palavras ao vento não deixam registro, mas intensos prazeres e dores repetidas, sim. Frases reiteradas deixam sua marca. Imagens revisitadas, sua prensa. Sons, ecoam. Conhecimento é Memória ativa. Pensamento é ação.

***

O Belo, que da Estética faz parte, é a organização da realidade, anárquica e aleatória, em formas sensoriais que lhe dão sentido e, a nós, prazer. Belo não é só o que nos alegra e agrada, mas também o que nos assusta e consterna, como a beleza de uma catástrofe natural, como um
tsunami, ou a bomba atômica, que explode em cogumelo.

O feio, antônimo apenas de bonito, pode ser belo. Guernica, de Picasso, é bela obra de arte que nos mostra horrendo crime histórico, feio e trágico, tal como a destruição de Rotterdam, Hiroshima, Nagazaki e outras cidades sem nenhuma importância militar. O Morto, de Cândido Portinari, mostra os terrores da guerra em bela e feia imagem, tinta de sangue; seu famoso Tiradentes esquartejado mostra os horrores do colonialismo. Belos quadros, feios temas. Fotos de Sebastião Salgado mostram,
em rostos e corpos, na pele e nos olhos, na seca e ao sol, o pavor da fome e da aids: belas fotos – angústia e medo.


*Grifos meus. Se quiser o livro/me manda uma mensagem que te envio: tamaracosta@gmail.com.