19.12.14

DA ESCRITURA - por Waly & Haroldo


AÇOUGUEIRO SEM CÃIBRA
Demente que martela,
com um dedo só,
as teclas dos pianos aéreos.

Açougueiro sem cãibra nos braços,
eu faço versos como quem talha.
A facão.
E talho para desbastar os excessos:
aparto de mim uma ruma de poemas.
Ao escrever
                    (sem lume, vista turva, cego,
                                                                  no ato bruto),
                                                                             o ego some, esfuma
E o nume Ninguem Nenhures é quem assume a autoria.

Há uma gota de sangue em cada fantasma?

Açougueiro sem cãibra nos braços.
Acontece que não acredito em fatos,
magarefe agreste,
pego a posta do vivido,
talho, retalho, esfolo o fato nu e cru,
pimento, condimento,
povoo de especiarias,
fervento, asso ou frito,
até que tudo figure fábula.

Açougueiro sem cãibra nos braços,
tarefeio tosco,
cozinheiro de gororoba,
demiurgo áspero.

Demente que martela,
com um dedo só
as teclas dos pianos aéreos.

Waly Salomão, Lábia [1998], aqui transcrito de Poesia total

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