16.5.12


na escada do vento
o sonho
folha que cura pequeno exu que
dança extático
[...]

trecho de “incorporando o jaguar”, Cliclones, Roberto Piva. Incluído no terceiro volume de suas Obras reunidas, Estranhos sinais de Saturno, Ed. Globo, 2008. 


Aoish, homem de negócios, me trazia também as histórias de sua mulher no intervalo da contabilidade. A cada desenrolar de novelo, entre os saldos “Mas por que são tão complicadas?”. Eu dava um sorrisinho repetido, amigável, como quem diz “Te vira negão. Problema teu”. Meu lance com Aoish eram os câmbios, tão somente. Nos encontrávamos uma vez por mês. Nos intervalos, de mente vazia, eu pensava sobre a questão. Um dia eu disse: “EU Aoish? Na minha opinião?”. Desinteressado em algo do tipo que não fosse negociação, levava os dólares do câmbio enquanto eu saía com o segredo. O cara tinha um insistente devaneio apaixonado de ir para a cama com outra mulher que não a dele. Saía sozinho, noite paga com os centavos que arredondava, metia uma duas três, mas não conseguia chegar lá. Quando estava quase, mas quase mesmo, lá naquele ponto que não dá mais recuo, tinha a tal visão. Via-se externo ao próprio corpo empunhando uma vingativa. Chocado, dizia “Não consigo entender mesmo mulher” e seguia luta para viver. Não morto, porém triste, queixo no peito, atravessava de volta as avenidas despedindo-se de perspectivas si mesmo, derrota cônscia e limitação em olhos que não podiam defrontar-se no espelho. É isso aí, quem sabe um dia, Aoish, quem sabe no dia que ela sumir. Na última troca, o cara chegou com uma faixa lhe assentando a cabeça. “Me fodi. Agora dá pra todo mundo ver...”, sentou e desatou a falar, como de praxe, que não suportava que duvidassem de sua honestidade. Arrendondava sim quantias a seu favor, argh, rum rum, mas “roubava quase nada”. Na noite anterior, o ladrão entrou pela janela e bagunçou-lhe a casa toda. Tinha levado muito pouco, além da papelada, quase nada, se comparado à seu temor de que o bandido tivesse sacado o caixa dois com a vantagem dos centavos. Enquanto ia sendo subtraído, abriu o portão e deu de cara com a mulher do tamanho de uma ervilha roendo uma gigante espiga vingativa de fronte para a reprodução. Mirou-se, abrindo buraco no coronário. Em seguida abriu a gaveta, pegou as moedas e começou a tapá-lo.

* Conto-exercício para a Oficina do Marcelino
Categoria intitulados porém ariscos. 

ver também: Coisa com Coisa #4

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