"Minha mãe quis que eu fosse bailarina. Eu não queria..." Hilda Hilst
Depois quis que eu fosse dançarina. Eu não queria. Meu pai queria que eu fosse pianista. Eu não queria. Depois, que eu lesse em voz alta a bíblia. Eu não queria, santo deus. Queria também que eu chegasse na hora marcada, que eu fosse generosa, que eu não bebesse, não saísse e não tivesse namorado antes dos dezoito. Eu só queria desenhar algumas coisas. Pregava os desenhos – folhas A4 – na parede do quarto, ao lado da cama ou embaixo - o diabo. Queria também desenho impresso no corpo - tatuagem.
Minha mãe quis que eu fosse psicóloga. Eu não queria. Vendi meu teclado e comprei um violão, musicoterapia. A essas horas meu pai já não queria mais nada, estava morto e sepultado. Era um cara que parecia mais feliz morto, pelo menos para mim. Meu pai queria ter ido para um mosteiro. Eu não quis acreditar que seu maior sonho era se ver livre de mim (nós) e passar o resto de sua existência entoando mantras e vivendo em puro silêncio, ou algo que se assemelhasse.
Eu quis entender porque ele queria aquelas coisas tão absurdas. Quis ler os livros dele. Depois, quis ser outra pessoa – quis ser alguém que sabia como percorrer as dimensões da alma, dos territórios, de todos os corpos. Minha mãe quis que eu ficasse em casa. Estrapolei as dimensões, rasguei a página e me virei do avesso até não me reconhecer mais no espelho. Raspei a cabeça, fiz o santo ou então o incorporei. Depois ela quis que eu me curasse, que tomasse remédio e ficasse bem, ou melhor, me adaptasse. Eu só queria escrever algumas coisas.
E então eu usava umas sapatilhas, não porque fosse bailarina, mas porque meus pés eram diferentes dos outros. Eu também não usava mais óculos, mesmo com mais de nove graus. E então eu me perguntava. O que você quer ser quando crescer? Eu não queria. Crescer era ter que vender minhas horas. As horas que me serviam para escrever alguma coisa. Eu precisava escrever alguma Koisa, eu devia.
Trechos usurpados do do Hilda Hilst - 4 min.
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6 comentários:
deve ser alguma coisa que diz respeito a mim, a todo mundo; só que com outra terminologia
muito bom.
humano até perder de vista.
eu ainda acho tempo, Duende.
Duende! How long...
:)
Adorei ler isso... Amo-te.
tempo! tem pô!
Em outra dimensão da minha própria existência, numa época que eu nem me lembro mais, também tive experiências parecidas. Minha vida era um sonho. Uma boa vida de sonhos... Alheios!
Escrevi sobre isso em alguma das minhas postagens, já não lembro qual. Ou talvez nem tenha postado. Enfim, foi nostálgico ler essa tua postagem.
Ótimo blog.
Há-braço!
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