23.6.10

a experiência mítica, por Julio Cortázar

"Cada vez que passeava pelo tempo, quando podia passear por Buenos Aires, e cada vez que passeio por Paris (aqui), sobretudo a noite, sei muito bem que não sou eu mesmo que, durante o dia, leva uma vida comum e normal. Não quero fazer romantismo barato. Não quero falar de estados alterados. Mas é evidente que esse eixo de se por a caminhar por uma cidade como Paris ou Buenos Aires durante a noite, nesse estado ambulatório em que, em um dado momento, desejamos pertencer ao mundo ordinário, me situo com respeito a cidade, e situa a cidade em respeito a mim, em uma relação que os surrealistas gostavam de chamar 'privilegiada'. É dizer que, nesse preciso momento, se produz a passagem, o poente, a osmose, os signos, as descobertas. E tudo isso é o que gerou, em grande parte, o que é escrito em forma de novelas e relatos. Caminhar por Paris - e por isso qualifico Paris como uma cidade mítica -, significa me mover (avançar) em direção a mim. Mas é impossível descrever com palavras. É dizer que, nesse estado, em que ando um pouco perdido, como em uma distração que me faz observar as cadeiras dos bares, as pessoas que passam, e estabelecer, por todo o tempo, relações que compõem frases, fragmentos de pensamentos, de sentimentos... Tudo isso cria um sistema de constelações sentimentais que determinam uma linguagem que não pode ser explicada com palavras. E nesse momento aparecem, em Paris por exemplo, lugares que para mim sempre foram privilegiados. Posso citar um, o primeiro que me vem a memória, perto daqui, em Pont Neuf, ao lado da estátua de Enrique IV, há um farol no fundo. Ali, onde se pára para tomar o "Bateau-Mouche". A noite, a meia noite quando não há mais nada, esse canto solitário é para mim, definitivamente, um quadro de Paul Deuvaux. Essa imanência de uma coisa que pode aparecer, que pode se manifestar, e que o coloca em uma situação que já não tem nada a ver com as categorias lógicas e os acontecimentos ordinários. Também poderia falar do metrô, em Paris. O metrô sempre foi para mim um lugar de passagem. Me basta passar pelo metrô para entrar em uma categoria lógica totalmente diferente das categorias lógicas, onde há mudança na sensação de tempo. Além disso, na história "El perseguidor", há um personagem que descobre que o tempo é completamente diferente quando está no metrô de quando está na superfície. E inclusive pode provar logicamente. Essa é uma sensação, uma experiência que tenho, pelo menos, a cada quinze dias. É descer, e descobrir bruscamente que, em certos estados de distração, no metrô, se tem a impressão de que se pode habitar um tempo que não tem nada a ver com um tempo que existe na superfície, uma vez que saímos na rua. E também estão nas galerias cobertas: a galeria Vivienne... Estão em todos os lugares de Paris que a gente recorre para ficar em um lugar coberto e contudo eram os lugares inquietantes de Lautreamont... Todos esses ambientes cobertos em Paris são absolutamente mágicos e misteriosos, é o que chamo de MÍTICO". entrevista de Julio Cortázar, livre-transcrição por Tamara Costa

Ver também:



Perto da linha do Trópico de Capricórno talvez o lugar de passagem esteja mais para um delírio sob o sol banhado a suor, amarelo manga, papel manteiga sob os olhos como uma imagem do SBT. e tudo que rumo de sombra se assemelhe. talvez o subterrâneo seja a sombra de uma suculenta e centenária árvore-mãe.

Um comentário:

Pratos de Ouro disse...

Foi um prazer visitar este seu blog. se possiel divulgue este novo blog dde opinião! Muito Obrigado

http://quadratura-do-circulo.blogspot.com/