15.8.09

Oitava elegia, de Rilke

Dedicada à Rudolf Kassner.

"Com todos seus olhos, a criatura vê o aberto. Somente nossos olhos parecem voltados, postos como armadilhas em tôrno da criatura, de sua livre passagem. O que está fora, nós não o lemos se não no olhar do animal, pois, a jovem criança está já voltada por nós e forçada a ver as formas diante de si, ao invés de desvendar esta abertura, tão profunda como a face do animal, livre de toda morte. Quanto a nós, é somente morte o que vemos. O animal sempre livre têm seu fim atrás e diante dele Deus. E quando ele se move, é para pertencer à eternidade, como os movimentos das fontes. Nós não temos um dia sequer, diante de nós, o puro espaço ao qual as flores se abrem infinitamente. É sempre o mundo e jamais, saído do nada, o lugar que é de parte alguma, a pureza que nada vigia mas que se respira, que se conhece infinito, que nada cobiça. Criança, tal aí se perde no silêncio e é perturbada. Ou tal outro morto o é. Pois perto da morte não a veem mais, o olhar se fixa e se torna talvez aquele do animal. Os amantes, não sendo o outro que mascara a vista, estariam muito próximos. Eles se admiram...

Atrás do outro, qualquer coisa se abre inadvertidamente... Mas ninguém jamais ultrapassa o outro e de novo tudo re-torna-se o mundo. Sempre voltados para a criação, não é se não nela que nós avistamos o reflexo da liberdade que nos encobre de sombra, ou quando um animal mudo nos atravessa com seu olhar levantado. É bem isso o destino: se manter em face, nada de outro, sempre em face.

Se tivesse uma consciência como a nossa, no aminal seguro de si que vem ao nosso encontro, seu movimento nos arrancaria do nosso caminho. Mas seu ser é infinitamente puro, sem limites. É seu olhar em seu estado, puro como a vista das coisas. Lá onde nós vemos o futuro, ele vê o todo e se vê ele mesmo no todo, e salvo, para sempre.

E portanto, há no animal se quente e vigilante, o peso e a preocupação de uma grande melancolia. Pois ele leva, ele também, o que assim frequentemente nos subjuga - a lembrança, este sentimento que tudo nos conduz o que tende a já estar muito próximo, muito fiel e de contato muito terno. Aqui tudo é distância e lá tudo era sopro. Depois do primeiro lar, o segundo lhe parece duvidoso e aberto aos ventos. Ó felicidade da pequena criatura que sempre permanece no seio que a levou ao seu termo. Ó felicidade do mosquito que, mesmo na hora de seu casamento, salta no interior do seio - , pois, estar no seio, é tudo. Olha esta segurança amputada do pássaro que, por sua origem, quase sabe de uma e de outra coisa, como se nele estivesse uma alma etrusca, vinda de uma morte que encerra um espaço, coberto por um que é. E quão turvo no voo é um ser nascido de um seio. Como assustado de si mesmo, ele atravessa o ar, assim como o avanço de uma rachadura na taça. É assim como o traço do morcego rasgando a porcelana da noite.

E nós: espectadores sempre e em todo lugar, voltados para tudo isso e não o ultrapassando jamais. Nós impomos a ordem. Tudo desmorona. Nós re-ordenamos, e nos decompomos nós mesmos.

Quem nos fez virar de modo que, o que quer que façamos, assumimos sempre a atitude daquele que se vai? Na última colina que lhe mostra uma vez ainda todo o vale, ele se vira, se detêm e demora - é assim que vivemos e as despedidas não cessam jamais.”
Elegies de Duin, Rainer Maria Rilke, Paris, 1949.

* Tradução livre para o português de Danilo Frabetti (dhangover@hotmail.com).

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