28.6.13

"Vou para o Café dos Búzios.
Um sítio decrépito. Mas eu gosto. Gosto daquele desgosto. Gosto da
sujidade dos desgostos. Porque eu.
Eu amo a humanidade.
Mas eu. É assim, reúnem-se velhos, aqueles velhos a contar histórias
glaucas. Em que há sempre uma grande inocência. Morte. Solidão.
Há uma luz crua que vem de Lâmpadas nuas e nas paredes as foto-
grafias dos times de futebol ficam na parte mais sombria. Não sou
homem solitário, nunca fui. Sento-me perto deles, e eles sim, são soli-
tários, infinitamente sós, como sobras. E bebo quatro, cinco, seis, sete
cervejas, porque. Claro. Os bailarinos têm facilidade de eliminar o
álcool. Seis, oito horas de trabalho atlético. Mesmo se já não as faço.
A verdade é que não as faço. As luzes do palco. Nós. Não as senti-
mos nem conhecemos como o público as vê. Nós. Nunca poderemos
saber o que o público vê. O público não vê, sonha. O público sonha.
Que se foda o público. Detesto sonhos. Detesto sonhos. Sim? Não me
diga. Não me faça gritar! De resto é um dos problemas da vida: nada
é o que parece."
 
Mafalda Ivo Cruz, O rapaz de Botticelli. Lisboa: Dom Quixote. Via Letras de Hoje.

26.6.13

Sem problemas, um poema de Diane di Prima

aqui livremente traduzido por tamara e costa


o primeiro copo quebrado no pátio sem problemas
creme de leite para vegetais esquecido sem problemas
a resistente mandíbula de Lewis MacAdam[1] sem problemas
policiais desembarcando para assistir dançarinas do ventre sem problemas
sacos plásticos com gelos derretidos sem problemas
disco arranhado sem problemas
o cachorro do vizinho sem problemas
o entrevistador de Berkeley Barb[2] sem problemas
acabou a cerveja sem problemas
entorpecentes mirradíssimos sem problemas
olhar de soslaio contemplativos Naropans[3] sem problemas
pontas de cigarro nos altares sem problemas
Marilyn vomitando no vaso de plantas sem problemas
Phoebe renunciando ao amor sem problemas
Lewis renunciando à Phoebe sem problemas
privar-se de filhos sem problemas
cio sem problemas
cruel sem problemas
arnica espalhada pelo tapete de nylon sem problemas
cinzas e juniper berries[4] num bowl de osso esbranquiçado sem problemas
perder a fita mágica sem problemas
perder a serenidade sem problemas
arrogância sem problemas
caixas de latas de cerva e ganhafas de vinho vazias sem problemas
milhares de copos de isopor sem problemas
Gregory Corso sem problemas
Allen Ginsberg sem problemas
Diane di Prima sem problemas
as veias de Anne Waldman[5] sem problemas
o aniversário de Dick Gallup[6] sem problemas
o peyote e o run de Joanne Kyger[7] sem problemas o vinho sem problemas
coca-cola sem problemas
começar pela grama molhada sem problemas
papel higiênico esgotado sem problemas
extermínio de poejos[8] sem problemas
destruição de grampos de cabelo sem problemas
paranoia sem problemas
claustrofobia sem problemas
crescer nas ruas do Brooklyn sem problemas
crescer no Tibete sem problemas
crescer em Chicano Texas sem problemas
dança do ventre certamente sem problemas
descobrir tudo sem problemas
desistir de tudo sem problemas
doar tudo sem problemas
devorar tudo que está à vista sem problemas

o que há na geladeira de Allen?
o que Anne guarda no armário?
o que você sabe que você
ainda não me contou?
Sem problemas. Sem problemas. Sem problemas.

permanecer um dia sem problemas
sair da cidade sem problemas
dizer a verdade, quase sem problemas
é fácil ficar acordado
é fácil decidir dormir
é fácil cantar um blues
é fácil entoar um sutra
o que há de choradeira em tudo isso?

isto apodrecerá - sem problemas
embalaremos em caixas - sem problemas
engoliremos com água, trancaremos no porta-malas,
fugiremos depressa. SEM PROBLEMAS.



No Problem Party, poem by Diane di Prima (via fuckyeahbeatgeneration.tumblr.com).
 


[1] Poeta, jornalista, ativista. Ver também (autobiografia): http://poetryandpoliticsanautobiography.blogspot.com.br/.
[2] Jornal clandestino (1965 a 1980), um dos primeiros influentes da contracultura sessentista.
[3] Estudantes de uma universidade budista americana? Ver também:
[4] Semente com aparência de berries (frutas vermelhas).
[5] Ver também (ela está na ativa/em ação): http://www.annewaldman.org/publications/.
[6] Ver também (2 poems by Dick Gallup):  http://www.richardhell.com/frames/gallup.htm.
[7] Poetisa americana zen budista. Ver também: http://epc.buffalo.edu/authors/kyger/.
[8] Planta com propriedades vermífugas?




"Algumas escritoras, apesar de terem seus nomes rapidamente associados à geração beat, são negligenciadas, pois, na maioria das vezes, assumem apenas a identidade de “esposas”, “amantes”, “namoradas”, “amigas” ou até mesmo só são citadas como groupies dos escritores beats. Com um trabalho mais atento, estudiosos como Knight (1996) investigam a literatura das escritoras beat Joyce Johnson, Edie Parker Kerouac, Joan Burroughs, Anne Waldman, Denise Levertov, Joanna McClure, Helen Adam, Jane Bowles, Madeline Gleason, Josephine Miles, Eileen Kaufman e Elise Cowen. Já Johnson & Grace (2002) lembram de Joanne Kyger, Janine Pommy Vegas e Anne Waldman. E Lee (1996), em uma coletânea, destaca, dentre vários poetas, as poetisas Carolyn Cassady e Bonnie Bremser. É interessante notar que, na parca bibliografia referente às escritoras beat, a poetisa Diane di Prima é a que aparece com maior frequência."
                                      (art. Três vezes marginal: vida e obra de Diane de Prima, Maria Clara Dunck Santos)